Nossa primeira meta, a
castidade, não se consegue ou vive da noite para o dia. A castidade é um dom
de Deus, mas também uma virtude a ser conquistada. Ela é fruto da temperança, e
apenas na generosidade do combate diário contra as tentações e também na
vivência plena da caridade é que poderemos alcança-la. Mas que meios utilizar?
Um deles é algo que soa de maneira estranha aos ouvidos modernos, afeitos que
estamos ao conforto: a mortificação. Iniciamos aqui a publicação de uma série
de textos extraídos do livro A vida
espiritual reduzida a três princípios, um clássico de autoria do Padre
Maurício Meschler, S.J., que nos ajudarão a entender e a praticar a vitória
sobre nós mesmos.
EM QUE CONSISTE
A VITÓRIA SOBRE SI MESMO
A vitória sobre si mesmo denomina-se também mortificação. É o que assusta desde logo. Ora, a pior das coisas é assustar-se
alguém sem saber por quê, e o melhor meio de readquirir a tranqüilidade é
verificar ser a imaginação a única causa de nossos terrores. O mesmo se dá com
essa virtude: basta vê-la de perto, para com ela nos reconciliarmos.
1. Que é, pois,
a mortificação? É a compressão moral, o esforço a que cumpre recorrermos, se
quisermos viver segundo a razão, a consciência e a fé; é a energia de que
precisamos, para proceder em conformidade com o dever, a fim de sermos o que
devemos e queremos ser: criaturas racionais, capazes de compreender nossa
dignidade de homens. A necessidade de empregarmos a compressão, para atingir
esse fim, é uma das consequências do pecado original; e continua atestação da queda
primitiva. Antes, não era questão nem de dificuldades nem de sofrimento.
Depois, as coisas mudaram. E, em razão da violência que devemos exercer contra
nós mesmos, esse trabalho pessoal toma diferentes denominações: vitória ou domínio
sobre si mesmo, renúncia, mortificação, ódio de si próprio, outras tantas denominações
que designam uma coisa única e que estão de acordo com a linguagem da Sagrada Escritura.
Despertam a idéia de combate, de privação voluntária, de esforço contínuo; e
esse pensamento não deixa de causar, ao espírito, certo mal-estar. A dificuldade não
provém somente da coisa, em si mesma, a qual, na essência, devemos desejar e
apreciar, mas sobretudo de nossa natureza, atualmente enfraquecida e que
importa corrigir.
2.
Qual é, propriamente, o objeto desse
combate? Que inimigo devemos
atacar e vencer? Desde já podemos afirmar que não é a nossa natureza. Não a
criamos e não é propriedade nossa: pertence a Deus que dela nos deu o uso, mas
não o direito de arruiná-la. Nossas faculdades naturais não podem constituir,
tampouco, o objeto da mortificação. Delas temos necessidade para viver e
operar. É do nosso maior interesse mantê-las efetivas e perfeitas. Serão
porventura as paixões a mira desse combate? Também não, porquanto, consideradas
em si mesmas, elas são boas, ou, pelo menos, indiferentes, e constituem o apanágio
indispensável de nossa natureza: somente o abuso as torna nocivas. Em si, nenhuma
dessas causas constitui, pois, o objetivo da mortificação: o que devemos
combater é unicamente a desordem, o desregramento que nelas possam existir.
Ora,
desregrado, desordenado, é tudo o que vai de encontro ao nosso fim, que nos faz
desviar dele, nos põe em risco de perdê-lo ou de nada lhe aproveita. Logo, é
desordem todo e qualquer pecado; desordem, o perigo a que nos expomos, sem
necessidade; desordem, as inutilidades que não encontram justificativa diante
da razão, da consciência e da fé. Tal é o objeto da mortificação, e o único propriamente
dito. Eis o que importa combater e dominar se quisermos viver de vida racional
e pura.
3.
O escopo da mortificação está, pois, nitidamente definido. Não é dificultar a
natureza e muito menos oprimi-la, prejudicá-la e arruiná-la; ao contrário, é
ajudá-la, guiar-lhe os passos, melhorá-la e dar-lhe força, vontade e
perseverança para o bem. É reconduzi-la, tanto quanto possível, à pureza, a justiça,
a santidade de origem; finalmente, é torná-la cada vez mais apta para utilizar
suas faculdades, empregando-as no serviço de Deus e do próximo.
O
constrangimento, a violência, o mal-estar, inerentes a mortificação, não podem
ser o alvo que visamos. Não nasceu o homem para sofrer, mas para gozar, na alma
e no corpo; foi o pecado a causa única da mutação que sobreveio. O sofrimento
é, pois, uma circunstância acidental; não constitui um fim, porém, o simples
meio de alcançar a vitória e a paz. Aliás, a sensação penosa vai-se atenuando
na razão direta da energia e perseverança desenvolvidas durante o combate.
4. Para melhor compreendermos a importância da
mortificação, faz-se mister considerar o lugar que ela ocupa na hierarquia das
virtudes e a qual delas se acha mais intimamente ligada. A falar a verdade, ela
intervém em todos os casos onde for preciso recorrer à força e à energia. Não
obstante, aproxima-se sobretudo das virtudes de temperança e de fortaleza: da
primeira quando se trata de reprimir as desordens de qualquer paixão; da
segunda, se for necessário empregar o valor e a perseverança num empreendimento
de difícil execução.
Eis, pois, o que é a vitória sobre si mesmo. Dadas as circunstâncias,
é ela o que há de mais simples e natural. Demanda, apenas, que sejamos o que
devemos e queremos ser, porquanto exige que nos demos ao trabalho de viver como
criaturas racionais, em nobre integridade digna de cristãos.
S. Inácio diz, excelentemente, no livro dos Exercícios, que
o resultado da mortificação deve ser um absoluto domínio sobre nós mesmos a tal
ponto que nunca nos deixemos arrastar por uma paixão desregrada. Ligar-lhe
outra importância, que não esta, é fantasia e só serve para fazê-la cair em descrédito.
É das idéias falsas e errôneas que se origina, em grande parte, a aversão a essa
virtude.
A mortificação nos aparece como esse “leão postado no
caminho” (Prov. 26, 13) de que falam as Sagradas Escrituras. Consideramo-la
como instrumento de suplício destinado a torturar e imolar a nobre natureza
humana que Deus criou para seu serviço. Nada disso. Importa, pois, formar idéias
exatas, a esse respeito. É a resposta para dirimir quaisquer dificuldades.
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